Guardadas pelo Babaçu: mulheres transformam o fruto em renda e resistência no Quilombo Boa Vista

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O babaçual é o guardião da terra! Com suas palmeiras altas, com palhas que moldam o vento e com fruto que traz a vida, ele é responsável pelo sustento e continuidade de uma história que resiste há quase meio milênio no Quilombo Boa Vista, na cidade de Rosário, Região Metropolitana de São Luís. 

Um grupo de mulheres quilombolas tem escrito um novo momento de resistência, autonomia e geração de renda, a partir de um símbolo do lugar, o coco babaçu.

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Foi o desejo de serem ouvidas que impulsionou sete mulheres a iniciar uma revolução comunitária, mudando o destino de inúmeras moradoras do Quilombo Boa Vista. O trabalho que iniciou com bandejas emprestadas, hoje produz bolos, doces, cocadas e outros derivados do fruto, gerando impacto econômico e quebrando as correntes para a independência financeira.

Em Boa Vista, elas sempre trabalhavam na roça e cuidavam da casa. Todo sustento foi provido pelos homens. Fato que incomodou a moradora Rosa Gaspar que decidiu iniciar uma luta pelo reconhecimento feminino.

“Só os homens colocavam produtos em projetos como PNAE e PAA. Eu falei com o presidente que eu queria uma participação na Assembleia Geral da Associação, porque eu não via a participação das mulheres. Questionei porquê as mulheres também não ganhavam dinheiro e não inscreviam seus produtos nos programas” destacou.

Rosa conta que teve a oportunidade na Assembleia e não perdeu a chance de falar. “Eu tinha um sonho de construir uma cozinha comunitária aqui no nosso território. Eu via que as mulheres não ganhavam nada, não tinham dinheiro e todas viviam com ansiedade, sem fazer algo que elas queriam. E aí, foram sete mulheres que se levantaram e disseram que acreditavam e que era pra gente se organizar para fazer um grupo” relatou.

Hoje, Rosa Gaspar é coordenadora do Sabor & Arte e conta, com entusiasmo, às mulheres do grupo, como essa história começou e a sua evolução até aqui. “Já tivemos momentos muito difíceis, mas hoje, graças a Deus, nós estamos com sucesso.  A gente completou mais 12 produtos usando o coco babaçu. E isso daí é motivo de alegria para nós, porque cada dia a gente está melhorando mais. Até a nossa qualidade de vida melhorou através do nosso trabalho que nós começamos”, conta Rosa.

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Quilombo Boa Vista: 400 anos de história e resistência 

O Quilombo Boa Vista é uma das mais antigas comunidades quilombolas do Maranhão, com 400 anos de existência. Segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022, o Maranhão é o estado com o maior número de quilombos do Brasil. São 2.025 localidades, o que representa quase 24% do total do país.

Esses territórios nasceram como refúgio para pessoas que fugiam da escravidão e hoje são símbolos de resistência, cultura e identidade. 

Em Boa Vista, essa herança histórica se reflete na força das mulheres que decidiram empreender mesmo com poucos recursos. A luta trouxe reconhecimento e autoafirmação como quilombola.

Assista ao vídeo:

Entre bandejas emprestadas e sonhos 

A ideia de transformar o cotidiano das mulheres da comunidade iniciou com Dona Rosa. 

A história desse sonho começou a ser escrita em 8 de março de 2019. O início da cozinha foi difícil, as bandejas para os bolos eram emprestadas e o local de trabalho das setes mulheres era improvisado. Mesmo sem estrutura, começaram a fabricar bolos com  produtos da própria roça e vender.

“Na época que a gente começou, como não tinha nada, a gente tinha que pedir emprestado. Sempre me emociono, porque você querer as coisas e você olhar para um lado e para outro e não ter alternativa, mas tinha aquela certeza no coração de que ia dar certo. A gente teve que pedir bandeja. Pedia bandeja e quando era 8 horas da noite, a gente tinha que devolver a bandeja para a vizinha. E, no outro dia, a gente tinha que pedir a bandeja de novo,” contou. 

Nas produções iniciais, o grupo Sabor & Arte trabalhou com bolos feitos de macaxeira e milho. Os alimentos eram inspecionados por nutricionista e distribuídos na rede municipal de ensino de Rosário. Com um tempo de atuação, o grupo conseguiu adquirir o Cadastro Ambiental Rural (CAR), o que possibilitou abertura de crédito em instituições financeiras. As sete mulheres fizeram um financiamento junto a um banco e conseguiram 5 mil reais para investir. 

“Com esse dinheiro, nós começamos a comprar bandeja, compramos um forno, compramos uma batedeira, então, a gente melhorou um pouco mais”, explicou Rosa. 

Quebrando as correntes com o babaçu

O Maranhão é o maior produtor de coco babaçu do Brasil, de acordo com o IBGE. Em 2023, o estado movimentou R$59.411 em relação ao produto, seguido do Piauí com R$7.599 e Tocantins com R$1.406.

No Maranhão, o babaçu faz parte da história de luta das mulheres. Quebrar coco é um ato de resistência, sustento e ancestralidade. Em comunidades quilombolas como Boa Vista, o babaçu carrega memórias e novas possibilidades de geração de renda.

Após comprar os primeiros materiais de trabalho, a revolução comunitária ganhou mais força e as sete mulheres começaram a perceber o coco babaçu como motor de transformação.

“A gente já usava babaçu normalmente. Usava pro leite, usava o mesocarpo, mas era para fazer mingau para gente mesmo, para casa mesmo. Não tínhamos o conhecimento que hoje nós temos em relação ao fruto,” disse a coordenadora.

Com o tempo, o grupo aprendeu a transformar o babaçu em diversos produtos: cocada, pudim, leite condensado, bolo e o famoso doce do mesocarpo – campeão de vendas nas feiras que o Sabor & Arte participa.

Por meio do guardião do Quilombo Boa Vista, as mulheres quebrando o coco quebraram as correntes para independência financeira. 

Produtos derivados do Babaçu oferecidos pelo Sabor & Arte

“A gente percebeu que trabalhar com o babaçu era o que a gente tinha que fazer e dar continuidade. E aí, foi quando a gente investiu esses 5 mil reais e a gente conseguiu alcançar 14 mil reais depois de três meses. E isso foi que alavancou o grupo e a própria comunidade,” ponderou a empreendedora. 

Além dos produtos derivados do coco babaçu, o grupo Sabor & Arte também produz biscoito de polvilho doce, sequilhos com queijo, sequilhos de goiabada, chips de banana e chips de macaxeira. O grupo também trabalha com o manejo da piscicultura.

Parcerias, capacitação e desenvolvimento 

Com o apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), as mulheres receberam capacitação em boas práticas de produção, beneficiamento do babaçu e gestão de microempreendimentos. O conhecimento técnico permitiu que elas conquistassem certificações, rótulos e padrões exigidos pelo comércio. 

“A orientação do Sebrae fez a gente superar tudo aquilo que era um gargalo na nossa vida, aqui no nosso grupo. A gente está conseguindo levar o trabalho e acompanhar o comércio também. Ainda faltam algumas coisas, mas a gente está evoluindo”, declarou Rosa Gaspar.  

O reconhecimento veio rápido. O grupo Sabor & Arte começou a conquistar diversos prêmios, inclusive, o prêmio Mulher Empreendedora Rural, garantindo visibilidade estadual para a iniciativa. 

“O Sebrae na nossa vida é um paizão, porque nos inscreveu, veio aqui, fez um vídeo com a gente, mostrou nossa realidade, e a gente conseguiu ganhar vários prêmios. Tudo isso foi levando a nossa existência para o município, para o estado e para o mundo. Hoje a gente participa de inúmeras feiras”, ponderou. 

Veja os principais prêmios da trajetória do grupo desde 2019 até hoje

Atualmente, o Sabor & Arte tem um trabalho consolidado na Região do Munim e com reconhecimento em todo Maranhão. O grupo presta serviços para os campus de Rosário e Maracanã do Instituto Federal do Maranhão (IFMA), além de atender o Programa Compras da Agricultura Familiar (PROCAF) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

De acordo com o setor administrativo do Sabor & Arte, o grupo tem o faturamento mensal de cerca de 30 mil reais. 

Mais do que renda, o projeto trouxe autoestima, orgulho e visibilidade para as mulheres do quilombo. Hoje, elas são exemplo de como a tradição pode andar lado a lado com inovação e independência.

Assista ao vídeo:

Futuro, investimentos e novos sonhos 

O Sabor & Arte vai entrar em uma nova jornada. Com a assistência técnica e gerencial do Senar, as mulheres vão receber uma formação profissional rural de beneficiamento do pescado. A capacitação vai permitir a criação de novos subprodutos, como por exemplo, a costelinha, carne de hambúrguer, almôndegas e o filé, todos da Tambatinga, um peixe que é resultado do cruzamento a fêmea do Tambaqui e o macho da Pirapitinga. 

De acordo com a técnica do Senar, Jessica Andrade, a formação vai agregar mais valor e somar com os produtos que as mulheres já produzem, possibilitando um retorno financeiro melhor. 

Um outro projeto que deve ser implantado no Quilombo Boa Vista, por meio do Sabor & Arte, é a criação de um roteiro turístico que vai abranger algumas localidades da Região do Munim. 

Segundo o gerente da Unidade de Negócios do Sebrae em Lençóis Munim, David Amorim, o órgão tem pensado várias formas de idealizar novos roteiros turísticos. “Dessa forma, a gente consegue, através de consultorias, capacitações, envolvendo toda a comunidade para que a gente tenha roteiros estruturados, proporcionando experiências únicas para quem visita o local. Vamos envolver toda produção associada ao artesanato e a gastronomia com os produtos oriundos do babaçu e fazendo com que a gente tenha uma sustentabilidade da comunidade”, relatou. 

No Quilombo Boa Vista, o futuro está sendo moldado com coragem, união e ancestralidade. E o babaçu, símbolo de tantas lutas, segue sendo semente de novos caminhos. Com 400 anos de história e revolução, a comunidade traça planos para um futuro empreendedor e promissor. 

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